Por Eunice Porto Real
Constelação Familiar - Um caminho de liberação.
Sou uma mulher que está muito além desse tempo e espaço mas apesar disso, estou muito conectada a você minha tataraneta e como a memória ainda é boa, vou te contar minha história para que você pare de seguir meus passos e faça a sua história.
Há muitos anos atrás eu fui muito feliz, tinha alegria de viver e era a filhinha da mamãe e do papai, não tinha tudo que queria, mas muito além do que precisava.
Até um dia que nem gosto de lembrar, vi minha vida mudar num piscar de olhos; fui roubada de minha terra e sem poder fazer nada frente a crueldade humana, deixei meus ancestrais chorando desesperados em casa ou na beira da praia enquanto eu era arrastada. Assim eu e outros tantos, fomos levados sem poder escolher se queríamos ou não mudar radicalmente nosso destino.
Fui jogada num navio e dali pra frente deixo de ser a filhinha querida e começo uma longa jornada para garantir a sobrevivência.
Nesse lugar sou impedida de cantar, de clamar pedindo ajuda e proteção mesmo que em oração a meus orixás, comecei a ter de me desidentificar de minha raiz; impedida de chorar, de me reconhecer e para diminuir a dor decidi deixar de lado as memórias do além mar, mas quem sabe um dia eu volte para os braços dos meus, que foram poupados porque não iriam servir.
Mas servir pra que? Onde estavam nos levando e quanto tempo mais faltava pra chegar? Perguntas sem respostas, violentamente podada com um “Cala boca Neguinha pra não se arrepender… se bem que você é bem gostosinha!!”
Vi meu corpo ser violado e senti muita dor e fui misturando sentimentos de raiva, indignação, vergonha e desamparo que doiam muito mais que minhas entranhas. Após esse abuso vi dias e noites passarem até perder a noção do tempo.
Vi meus irmãos sendo espancados por se revoltarem com a situação e alguns sendo jogados ao mar a título de aprendizado a nós outros … “se reclamar como ele vai morrer do mesmo jeito”
E assim fui aprendendo a calar para sobreviver.
Tempos depois somos obrigados a descer daquele lugar fétido e meu cheiro não era diferente; me vi com os outros jovens - homens e mulheres sermos expostos como um pedaço de carne no matadouro e ali fui “escolhida”.
Perdi a identidade e o direito de ser humana e a partir daquela feira vivi anos de perdas e nas situações onde achei que já havia sido o limite, percebi que podia ser pior e foi muito além. Passei a servir, calar e negar tudo que fosse difícil de aceitar, só assim evitava a dor e ao lembrar do colinho da mamãe e do abraço protetor do papai, mesma à distância, me sentia em paz.
Foram muitos anos de dor, vi muitos dos meus morrerem sob o peso do chicote, após serem capturados na tentativa de fuga, se rebelar ou simplesmente desejar estar com o seu homem, mulher ou filho.
Encontrei meu grande amor na senzala e passei a crer novamente que valia pena viver e com ele fomos muito felizes, até ter meu primeiro filho e formarmos uma nova família; mas seio de mulher preta e bonita na senzala é para dar prazer ao senhor di engenho ou a seus convidados e amamentar aos seus filhos brancos; prazer preto? Só se não fossem ela ou ele, os escolhidos para continuar a vida através do semen ou do leite e como era esse o meu caso, novamente fui separada dos meus amores e ao me ver sozinha decidi fechar o cardíaco, pois amar e se apegar não adianta já que eles vão embora.
Parei de criar expectativas afetivas, já que a vida do meu homem não é dele e a do meu filho ainda era do meu senhor…
Não tive dinheiro e se algum negro fosse pego com qualquer quantia, mesmo provando ter ganho de alguma alma boa, ia para o tronco e era açoitado, muitas vezes até a morte, só para servir de exemplo.
Não pude ler nem escrever, pois isso era coisa pro homem branco e eu que tinha de trabalhar muito todos os dias, não tinha direito a isso.
Lembro que gostava do dia de festas do senhor do engenho, porque nesse dia podíamos comer e beber até cair, assim eu e muitos outros aprendemos usar o álcool para anestesiar a dor, a tristeza e a frustração.
O tempo foi passando e como uma vela, a chama da vida foi se apagando; o corpo velho já não aguentava mais apanhar, sofrer, chorar e numa noite qualquer ao dormir não levantei mais para o mundo dos brancos.
Ao acordar me vi nos braços da minha mãe e muitos pretos livres, vieram limpar minhas feridas do corpo e da alma. Que alegria senti, pois agora entre os meus eu realmente posso descansar e sonhar:
- Quisera eu que os que vierem depois de mim, façam diferente e consigam ser mais felizes que eu, por mim eles estão e serão livres para fazer melhor.
Eu não tive escolhas mas eles terão e farão diferente por amor a mim assim, desejei a eles tudo de bom.
Do lado de cá vi nascer meus descendentes e com a certeza da vida passada adiante, comecei a agradecer, já que apesar de toda dor, tudo foi o suficiente para que a vida seguisse adiante. Só por isso pra mim já valeu a pena. Eles são livres e agora eu posso descansar em paz
Décadas depois vejo um dos meus, passando dificuldades financeira, sem ter o suficiente para sobreviver, buscando a morte, se perdendo em vícios, vivendo um relacionamento abusivo, ficando sozinha mesmo querendo ter alguém, abandonando filhos a própria sorte sem a menor dor e ao ver tudo isso pensei: porque ela está repetindo minha história, não é a história dela… e entristeci por que essa não é a vida que eu queria para ela e queria muito que ela me ouvisse:
“Eu sei que agora a vida é de outra forma, faz melhor do que eu. Você está livre!!!
Hoje deste lado, ouço falar de uma tal constelação familiar que pode curar essas feridas da alma e colocar cada um no seu lugar, que pena não ter como gritar a minha tataraneta: faz logo isso e me deixa em paz!
Viva sua vida e segue seu caminho, sem olhar e querer mudar o meu. Só assim você me honra, sendo feliz também. Como eu queria que eles vivessem o que lhes cabe, a dor que é minha não teve como ser curada, nem pode ser mudada, mas hoje no meu grito silencioso quero bradar - ME TRAGAM VIVA NO CORAÇÃO E NÃO NO CORPO, NEM NA ALMA - por amor EU OS LIBERO A SEREM MELHORES DO QUE EU, SIGAM SEUS DESTINOS E LÁ NA FRENTE NOS ENCONTRAMOS.
Eu os amo muito e tenho orgulho do que se tornaram, lá na frente a gente se encontra.
Um beijo da Sua Tataravó
Eunice Porto
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